“Regeneração” do Largo da Feira. Oportunidade (novamente) perdida?


Professor e artista plástico, nasceu em Lisboa e reside em Seia desde 1988. Foi Diretor do jornal Porta da Estrela, fundador da Associação de Arte e Imagem de Seia e um ativo dinamizador das artes plásticas na região
Toda a gente concorda que o Largo da Feira não estava bem como estava. Era um buraco no meio da cidade. Um descampado em plena Sede do Município. Uma vez por semana, a feira trazia cor e movimento ao feio buraco. Nos outros dias, tentava-se disfarçar o vazio com um parque de estacionamento caótico, às vezes com a tenda de um circo. Não fosse o Plano Estratégico de Desenvolvimento Urbano de Seia (PEDU), alimentado pela parceria europeia Portugal 2020 e um investimento de 4.4 milhões de euros, cofinanciado pelo CENTRO 2020, o buraco continuaria igual.
O resultado da obra, que tem de ficar pronta até ao final do ano, já pode ser antecipado e o progresso é evidente: o buraco do Largo da Feira continua lá, a céu aberto, mas muito melhor do que estava, pelo menos no que respeita ao muro de suporte da encosta, agora em pitorescos socalcos muralhados, arranjo do espaço e colocação de piso adequado, substituindo o anterior lamaçal. A Estratégia 2020 está direcionada para o “crescimento Inteligente, sustentável e inclusivo” e há que limar arestas para lhe dar razão.
Apresentado publicamente a 4 de abril 2018 na Casa Municipal da Cultura, o projeto “Porta da Estrela” criou compreensíveis expetativas. Desde o anterior grande “esventramento” da Avenida 1º de Maio, para corrigir as obras anteriores nas quais foram substituídas infraestruturas antigas em risco de colapso e resolvido o problema da ribeira subterrânea, os comerciantes locais receavam precisamente isto que aconteceu: mais uma cirurgia de “regeneração”, mais uma dolorosa “requalificação”. Com a importante diferença de se apresentar como “o momento de oportunidade”, o que, sendo uma oportunidade única para o bem comum, tem muita lógica. Claro que há sempre quem proteste, por falta ou por excesso de esclarecimento. Mas a verdade, a verdadeira, é que os decisores e os técnicos já estão concentrados no projeto seguinte, um Parque de Lazer na Quinta da Nogueira e o Parque Verde Urbano no terreno adjacente à Central de Camionagem – projetos a incluir no Portugal 2030. Esperemos que também caiba aí o desmantelamento da exuberante “Fonte Luminosa” na rotunda da Central de Camionagem, um problema com mais de duas décadas, que permanece. Uma fonte luminosa onde não pode haver água e a luz apenas serve para tornar visível à noite o perigoso obstáculo.
A questão que se deve colocar é: porquê assim? Porquê não resolver de vez o problema do Largo da Feira ou, no mínimo, lançar bases para uma futura resolução mais cabal? “Regeneração” significa, na prática, pouco mais do que “lavar a cara ao doente”. A “requalificação” é assunto mais sério, permite até escolher a doença em função do remédio. Mas, como diz o povo, esperemos que o remédio não seja pior do que a doença. Corre-se o risco (não seria caso único nas obras públicas na região) de matar o doente com o tratamento. Com a Avenida por conta dos habitantes e turistas, o trânsito estrangulado pelos apertados corredores de asfalto, lombas “Mickey Mouse”, o Hub Intermodal em frente ao Cemitério,… todos os senenses anseiam pelo “efeito alavancador” das obras. A começar pelo desejado aumento de transeuntes locais em rota de lazer ou no parque de “fitness” urbano / “parque de manutenção intergeracional”, alunos a deslocarem-se a pé para a escola, turistas a visitar a “baixa” senense pós-requalificação.
Todos me parecem de acordo, também, com a terraplanagem do Largo Marques da Silva, a substituição daquele pequeno jardim romântico do início do século XX por uma placa de rotunda como deve ser. Surge no entanto a questão do paradeiro da estátua a Afonso Costa que estava no local, obra de uma grande escultora portuguesa, Dorita de Castel-Branco (1936-1996) e o mesmo cuidado com a conservação e nova colocação deve ser exigido para o conjunto escultórico “Monumento ao Bombeiro”, do escultor Soares Branco (1925-2013), que estava no local onde aterrou o Hub Intermodal, essa novidade indescritível. As estátuas referidas são obras de arte públicas, encomendadas pelo Município para a Cidade e devem poder ser usufruídas pelos cidadãos, de modo a evocar momentos significativos da História de Seia, reforçar laços identitários, lembrar e agradecer a coragem e o abnegado esforço de alguns para o bem de todos.
Tapar o buraco do Largo da Feira é uma ideia com muitas décadas, peregrina e mesmo excêntrica. Tal como o famoso túnel de ligação de Seia/Gouveia a Manteigas e Covilhã (que ainda se discutia na A. R. em 2018, por requerimento do então deputado Santinho Pacheco) várias vozes sonantes defenderam a conversão do terreiro multiusos que era o largo da Feira numa estrutura multiusos, multiplicando o espaço do estacionamento, coberto, e a multiplicação de espaço para iniciativas públicas e privadas, inclusive a possibilidade de realizar a feira semanal no seu interior – o que seria bem mais prático e cómodo para todos.
Tradicionalmente, a feira tem “vocação” de terreiro. As suas origens perdem-se no tempo mas, como feira semanal à quarta-feira, foi criada no Terreiro da Misericórdia (atual Largo da Misericórdia) em 1857, por Edital datado de 14 de agosto, sendo então Presidente da Câmara José Maria Pinto de Mendonça Arraes. Com a abertura da estrada de acesso à Torre, que implicou mudar de local a Fonte das 4 Bicas, a feira passou para terreiros mais amplos até se fixar no terreiro adjacente ao cemitério após a abertura da Avenida 1º de Maio. A Câmara de então terá chegado a estudar a construção de um novo mercado coberto na zona (o mercado no centro urbano de Seia data de 1967) mas o estudo mais sério para aproveitamento do espaço surgiu já no início deste século, sendo Presidente da Câmara Eduardo Mendes Brito.
Aproveitando o entusiasmo gerado pelo enorme sucesso da Fiagris’99, a Câmara contactou três arquitetos de renome, Álvaro Siza Vieira, Eduardo Souto Moura e Tomás Taveira, tendo em vista a construção de um grande pavilhão de exposições. Apenas Tomás Taveira aceitou realizar um anteprojeto e visitou o local em 2000 mas, em junho de 2001, a Câmara anunciou que desistia da ideia. Após analisar o anteprojeto, Eduardo Brito ficou esclarecido sobre “aquilo que não queria” para Seia (PE nº599, 11/06/2001). Dispondo então a engenharia de soluções técnicas para tudo e sendo Tomás Taveira um arquiteto pós-modernista, conhecido pela extravagância formal e cromática das suas obras, o custo estimado deve ter sido incomportável…
Os custos, enfim, acabam por ser o verdadeiro travão do desenvolvimento. Requalificações necessárias e por vezes urgentes vão sendo tratadas com pensos rápidos e próteses decorativas à medida de programas e projetos engendrados e autorizados em Bruxelas por quem pode engendrar e autorizar essas coisas. Importantes decisões tomadas com base em rácios determinados por gráficos e indicadores económico-financeiros dos Estados membros e respetivas regiões, nos quais a Serra da Estrela surge como sendo plana, tal e qual os Países Baixos, e o buraco do Largo da Feira não aparece, muito menos a “Fonte Luminosa”.