A democracia foi hackeada: fake news, algoritmos e poder
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O conceito de democracia hackeada, refere-se à interferência e manipulação nos processos democráticos através de técnicas de hacking, big data e engenharia social. Este fenómeno manifesta-se na política contemporânea, especialmente em eleições onde há recolha e uso massivo de dados, em que os candidatos recorrem a disseminação de fake news, uso de bots e perfis falsos que podem influenciar a opinião pública e a legitimidade dos governos.

Assim foi abordado este tema num trabalho de âmbito filosófico publicado no Brasil, intitulado “Democracia Hackeada: hacking, legitimidade e opinião pública” que sugere que os procedimentos e propósitos democráticos estão constantemente vulneráveis a interferências internas e externas, alterando os fundamentos da obrigação e da legitimidade política.

Se antes os políticos dependiam de televisões e jornais para comunicarem, hoje basta um tweet ou um vídeo no TikTok para alcançar milhões.

As redes sociais são as novas arenas políticas, o palco que tem influenciado desde eleições até à formulação de políticas públicas. A capacidade de ampliar discursos, mobilizar concorrentes e até manipular perceções, faz delas ferramentas poderosas e muito perigosas.

O funcionamento das redes sociais baseia-se em algoritmos que priorizam conteúdos com maior envolvimento, que em muitos casos “descambam” em discursos de ódio, notícias falsas e polémicas, porque estas geram mais cliques do que debates ponderados.

Esta realidade fortalece as bolhas ideológicas, onde os utilizadores veem conteúdos que reforçam as suas opiniões, tornando o diálogo democrático mais difícil.

Tanto os media tradicionais como os social media podem ser enganadores, mas a diferença principal reside no fenómeno Big Data. Big Data refere-se à enorme quantidade de dados que é recolhida e processada rapidamente, permitindo a criação de estratégias sofisticadas de manipulação, influência e dominação. A velocidade e o bombardeio de informações geradas e disseminadas tornam extremamente difícil que as pessoas consigam distinguir a verdade da mentira.

Campanhas coordenadas, como as que ocorreram com o Brexit, as eleições dos EUA e do Brasil, demonstraram como bots e anúncios segmentados podem manipular opiniões e até alterar resultados eleitorais.

Sobre as eleições do ano passado nos EUA, o jornal Vox destaca a manipulação de Elon Musk nas eleições através de discursos de ódio e de teorias da conspiração disseminadas na rede social X, que são subentendidos como liberdade de expressão quando Musk declara “Vocês são a mídia agora”.

Desde o dia em que Elon Musk comprou o Twitter, rebatizada X, que a “dita liberdade de expressão” fazia parte dos planos revolucionários para o futuro da plataforma. Desfez-se da equipa de segurança, implementou o Community Notes, um sistema de verificação de factos menos eficaz e eliminou as medidas de segurança anteriores, abrindo assim as portas para que outras social media o seguissem.

Mas não ficou por aqui, os regimes autoritários ditam como querem que a X funcione nos seus países. Mais liberdade de expressão transforma-se em desinformação.

Um artigo do Le Monde dava conta de alertas de fraude eleitoral, imigrantes descritos como selvagens, acusações de fraude em comícios democratas, teorias da conspiração e estereótipos racistas, que aumentavam em cada dia, a lista de “verdades alternativas”, do presidente Trump.

Nas mesmas eleições, o Wall Street Journal, um dos mais importantes jornais económicos dos Estados Unidos – criou quinze contas na rede social X (Twitter) de Elon Musk e distribuiu-as por diferentes estados do país, muitos deles pertenciam aos chamados ‘swing states’ ou ‘decisive states’.

Os perfis foram construídos para mostrar interesses em tópicos como desporto, artesanato ou culinária e evitar a interação com contas relacionadas ao Partido Republicano ou ao Partido Democrata.

No entanto, os perfis receberam inúmeros conteúdos políticos, incluindo transmissões ao vivo de um comício de Donald Trump, sem nunca terem interagido com esse tipo de conteúdo.

E o papel das plataformas? Empresas como a Meta (Facebook), X e TikTok afirmam estar a combater a desinformação, mas há dúvidas sobre sua eficácia e imparcialidade. Afinal, o que é considerado “desinformação” pode depender de interesses políticos e económicos. Neste contexto a desinformação ganha contornos de liberdade de expressão.

Este cenário não é único dos EUA. Imaginem em Portugal vivermos uma realidade semelhante? Imaginem um partido crescer em popularidade e com imensos escândalos a ele inerentes? Um partido que também seja hábil nas artes da disseminação de discursos de ódio e distorção de realidades, provavelmente chegaríamos a um ponto da nossa história, uns 50 anos atrás.

Se descermos um pouco na hierarquia e com algum esforço de memória, este cenário é um deja vu de uma qualquer campanha das autárquicas, numa qualquer vila do nosso país, se calhar do nosso concelho, onde foram criados perfis falsos, boatos e lavagem de muita roupa suja numa rede social.

Sim. Também é verdade que as vozes outrora ignoradas foram ampliadas pelos algoritmos, mas também se ergueram as vozes populistas e os discursos tóxicos. Mas estarão as duas em pé de igualdade?

A minha perceção é que não. Parece existir um conformismo generalizado assente numa falta de cultura geral e desinformação.

Algoritmos, bolhas e filtros, uma realidade que mostra apenas a informação que reforça opiniões, criando a ilusão de uma verdade absoluta. É esta a democracia que queremos?

Neste contexto é possível os governos reivindicarem legitimidade? São muitas as dificuldades para compreender se o consentimento foi legitimo ou fruto de hacking e da engenharia social. É preciso abrir espaços para discutir estas questões e, em primeira lugar, admitir que o hacking existe.

Tal como o tratado da tolerância de Voltaire mostrou que tolerância é igual a intolerância, a democracia é igual a regimes autoritários. Algures neste conceito atual de democracia, ergue-se o “Grande Irmão” e a premonição de George Orwell ganha formas muito sofisticadas de engenharia social.

A democracia foi de facto, hackeada. Não por um ataque súbito, mas por uma erosão silenciosa alimentada por algoritmos, bolhas informativas e manipulação digital.

Se antes a informação era um pilar da democracia, hoje tornou-se uma arma usada tanto para esclarecer como para confundir.

O verdadeiro perigo não está apenas na tecnologia, mas na nossa passividade diante dela.

É preciso saber ler nas entrelinhas porque a verdade nunca é o que parece à primeira vista. A verdade é moldada, filtrada e vendida ao melhor clique. Vamos continuar a aceitar a manipulação como parte do jogo democrático? Veremos nas próximas eleições.

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